Qual o segredo?
Se existe eu desconheço. Por aqui, o único caminho que conheço é a repetição.
Essa semana que passou, fui abordada na rua por uma mulher desconhecida que me pediu desculpas pela intromissão, mas que queria me fazer algumas perguntas. Era sábado, em torno de umas 9h30 da manhã, e eu havia acabado de terminar meu treino de corrida. Estava caminhando em retorno para casa, usando fones de ouvido, quando senti algo cutucar meu ombro. Minha reação foi de susto, achei que algum passarinho com problemas estomacais estava liberando seus desconfortos em mim. Depois de alguns pedidos de desculpas, de ambas as partes, a mulher desconhecida queria saber o que eu comia e o que eu deixava de comer para estar em forma. Primeiramente, agradeci que ela estivesse me considerando em forma e, meio sem jeito, respondi que eu tentava viver uma vida equilibrada, comendo de tudo. Ela me contou que há pouco tempo havia tomado consciência da importância de se exercitar e cuidar da alimentação, mas que estar “em forma” parecia para ela um objetivo inatingível. Na sequência, ela me fez uma pergunta que muitas pessoas fazem a mim, e imagino que a todas as pessoas que praticam esportes: há quanto tempo você corre? Há quanto tempo você se alimenta bem e faz exercícios? E eu nunca soube responder essa pergunta porque simplesmente acho que minha história com o esporte não tem começo. Tentei explicar para ela que era "desde sempre”, mas senti que essa resposta causou uma certa decepção, pois fazia ela acreditar que, começando tarde, não haveria mais jeito. Rapidamente percebi isso e tentei achar algum início para a história, fui buscando um tom de "era uma vez" para poder explicar para ela que o começo não tinha data, e que ela poderia sim, começar a qualquer momento. Nem cogitei contar a ela que há menos de uma semana eu tinha corrido uma maratona, pois isso abriria um outro mundo de perguntas e respostas que causariam mais estranhamento que empatia.
Contei a ela que sempre senti necessidade de gastar energia fisicamente, que desde criança eu achei jeitos de me mexer, e que por influência dos meus pais, tive desde cedo a noção do que significava me alimentar bem e me alimentar mal. Essa noção não faz com que eu exclua todas as possibilidades consideradas ruins, mas faz com que eu saiba fazer escolhas mediante ao equilíbrio. Ela perguntou se eu bebia álcool, se eu comia doces e eu disse que sim e que sim. Percebi a surpresa no olhar dela, que, como iniciante num estilo de vida considerado saudável, deveria estar sendo bombardeada de informações motivacionais excludentes e extremistas, de que para ser magra, ser sarada, necessita-se entrar numa seita que reduz suas possibilidades de ser e estar no mundo a comer ovo e batata doce enquanto absorve histórias de superação.
Não sei quanto tempo durou nossa conversa, pois foi um fato tão incomum, que não coube medir a passagem de tempo. Atualmente é comum que esse tipo de abordagem aconteça nas redes sociais e não assim, face a face. Dada a ousadia do encontro, valorizei o momento no meio de uma calçada no centro de uma cidade movimentada, em que duas mulheres com percepções e histórias acerca dos cuidados de si bem distintas, buscavam encontrar um ponto em comum. Tomei então cuidado, para que minha narrativa de uma história de vida, que nunca conheceu outro modo de existir a não ser fazendo esportes e selecionando alimentos com base em seu valor nutricional, pudesse destruir as esperanças de uma iniciante. Resumi que eu desconhecia o meu começo, mas me descrevi como sendo uma pessoa não tradicional, não devota a nenhuma conduta fixa, tampouco adepta a exclusões definitivas. Disse a ele que eu não sabia o segredo, mas o que eu poderia afirmar é que, de minha parte, me mantinha constante, dia após dia. Mencionei que tentava encontrar pequenos prazeres e que encarava o exercício como um ritual necessário como parte de um processo maior, assim como trabalhar, que nem sempre tenho vontade, mas vou, pois preciso daquilo que o esporte e o treino me proporcionam.
Não sei que idade ela tem, nem nos apresentamos por nome, mas acredito que ela pertença à mesma geração que eu, talvez alguns anos a mais. Pensei na diferença abismal do meu estilo de vida para o dela, quando eu mencionei que corria, nadava e também fazia musculação. Ela perguntou quantos dias e eu falei todos, ela arregalou os olhos. Eu falei que havia bebido cerveja e tequila ontem a noite e que, diferentemente da maioria que estava no mesmo bar que eu, eu estava ali correndo e que isso não me torna melhor que os demais que ainda estão dormindo, mas me torna apta a manter o estilo de vida que eu gosto, ou o corpo “liso”, como ela fez questão de mencionar.
Refleti sobre como nós, mulheres da mesma geração, vivendo na mesma cidade, acabamos abraçando e negando discursos diferentes ao longo da vida. Ela almeja um estilo de vida saudável e um corpo atlético como um objetivo, uma conquista. E eu não sei como vim parar aqui, tampouco saberia como sair, se acaso desejasse. Me enrolei um pouco para falar, penso que talvez ela tenha se arrependido de ter gastado a coragem dela de abordar uma desconhecida na rua e ter ouvido um monte de não sei. Fiquei pensando o que de fato as pessoas que não têm o hábito do esporte em suas vidas, esperam ouvir de quem tem. Não tenho uma história de superação para contar, o esporte não mudou a minha vida, não precisei ficar doente para me alimentar bem, tampouco sei explicar de onde eu tiro vontade, porque eu simplesmente não reflito sobre a vontade nestes casos. É simplesmente a minha vida, dia após dia.
Encerrei a conversa de calçada agradecendo por ela ter me achado digna de responder aquelas perguntas. Em seguida, pedi desculpas por não ter ajudado talvez da maneira como ela esperava. Reforcei que, se existe um segredo, eu desconhecia e que o único caminho que eu conhecia era o da constância. Falei que, mesmo eu tendo repetido esses hábitos ao longo da vida, eu conhecia muita gente que havia começado depois e estavam felizes com suas conquistas. Lembrei da minha irmã, que é apenas dois anos mais nova que eu, criada na mesma casa, com os mesmos costumes, e é uma mulher sedentária e satisfeita com seu corpo e ainda por cima possui o índice de glicose muito menor e melhor que o meu. Ao final, fiz questão de enfatizar que o que eu considerava mais importante era não se tornar chata, pois há uma infinidade de discursos sobre a vida que estão sempre se sobrepondo uns aos outros e que nenhum deles é um veredito definitivo. O que ela achou esteticamente interessante no meu corpo é considerado murcho e fraco pela maioria das praticantes de Crossfit. Tudo depende de quais óculos estamos colocando para ver a vida. Avisei a ela que se ela por ali estiver com frequência, irá me ver passando correndo muitas vezes, dia após dia, porque, na falta de uma explicação melhor, acho que a repetição é o jeito.
Carina